domingo, 19 de junho de 2011

O princípio, o meio e o fim

          “De quanta terra precisa o homem?” A pergunta é o título de um conto de Leon Tolstoi. Nele, um sujeito faz pacto com o diabo. Receberá toda a terra que conseguir percorrer a pé, durante um dia, do nascer ao pôr do sol. O homem atravessa as horas sem descanso. Quando o sol já se aproxima do horizonte, não se dá por satisfeito. Corre. Falta-lhe fôlego, mas ele não para. Quer ainda possuir aquele vale, aquele bosque. Quando cai morto de fadiga, o conto explica de quanta terra precisa um homem: se ele não tem consciência de limites, apenas um par de metros lhe basta. Uma cova não requer mais do que isso.
          A trágica moral contida no conto sintetiza um mito-chave para a compreensão da crise que nossa civilização enfrenta. O mito do único pecado que os gregos consideravam capital: a arrogância, entendida sobretudo como falta de consciência de limites, como ambição desmedida, como desejo incontrolável de posse e de poder. Para os gregos antigos, a arrogância era o maior de todos os pecados. Era a falha que não tinha perdão. Eles a chamavam hýbris, e acreditavam que incorrer nessa falha acarretava a danação eterna.
          Não é assim, desse modo arrogante – feito de destruição, poluição e exploração insustentável dos recursos naturais – que tratamos nosso planeta-mãe, a Terra? Convencidos de que todas as coisas foram criadas para satisfazer nossos desejos e necessidades, inventamos uma cultura inteiramente destituída de bom senso: a cultura da produtividade e do consumismo insustentáveis. Como no conto de Tolstoi, não conseguimos parar. Derrubamos e queimamos florestas, matamos lagos e rios, poluímos os mares e a atmosfera, extinguimos espécies de plantas e de animais. Sem falar nas mazelas que produzimos para nós mesmos, como perturbações da saúde física, psíquica e mental, ao nos impormos um ritmo e uma carga insustentáveis de trabalho, de produção e de consumismo.
          Embriagados pelo desejo de posse e de poder, cada vez mais distantes da sabedoria ancestral da qual 
somos herdeiros, esquecemos que a arrogância constitui um desequilíbrio maior. Não lembramos que, por uma lei natural, toda ação que leva à perda do equilíbrio gera uma força igual e contrária que procura restabelecê-lo. Essa força, que os gregos chamavam Nêmesis, era simbolizada por uma deusa implacável, avessa a qualquer compromisso, a qualquer oferenda, a qualquer intervenção apaziguadora. Para os gregos, o aquecimento global nada mais seria do que uma das tantas manifestações de Nêmesis: a consequência nefasta de uma ação errônea.
          Gaia vive esse tipo de raciocínio, por sinal, há muito deixou de ser formulado no âmbito estrito da filosofia e da religião. Hoje, ele invade o território pragmático da ciência. Cita-se como exemplo a Hipótese Gaia, do cientista inglês James Lovelock. Para ele, a Terra não é uma simples bola mineral a rodopiar pelo espaço afora. Lovelock e seus seguidores entendem nosso planeta como um ser vivo, pulsante, dotado não apenas de um corpo físico, mas também de psique. Um macrosser, em tudo análogo a seu filho, o homem.
          “Até quando a Terra suportará sem reagir todos os arranhões que estamos produzindo em sua superfície?” A célebre questão de Lovelock, formulada há cerca de três décadas, não precisou esperar muito pela resposta. Ela está aí: o planeta reage às agressões de múltiplas formas e, no momento, a mais ameaçadora delas chama-se aquecimento global.
                                                                                                   
 Istoé, 18 de dezembro de 2009

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